sexta-feira, 10 de julho de 2009

Cenas de uma oficina

Quadro negro, mesa grande, poetas e futuros poetas com seus lápis e papéis à mão. Um deles interrompe a minha fala para perguntar:

- Telma, será que você poderia nos falar um pouco sobre Kant?

Immanuel Kant.

- Sobre a Crítica do Juízo. Eu estava lendo esses dias em casa e fiquei muito intrigado.– E ele discorre sobre a obra e faz uma capciosa indagação, que põe em xeque o que acabei de dizer.

Desafios constantes, como esse, momentos instigantes, afeto, criação, curiosidade: tudo isso misturado era a nossa oficina.


Oficina de criação literária, nos espaços da biblioteca comunitária do Centro Administrativo Regional da Restinga. A biblioteca foi exigida pela população, através de uma demanda no Orçamento Participativo. No início, ocupava o espaço de uma sala diminuta, com estantes improvisadas. Desde 2001, seu acervo foi crescendo, seus leitores se multiplicando, e hoje a biblioteca conta com sete mil volumes e intensa movimentação diária.

Segue o meu depoimento de poeta-oficineira nos espaços da Biblioteca Josué Guimarães – Ramal 2, Restinga.





Quando formulei o projeto Rumor da Casa, financiado pelo Fumproarte em 2008, incluí entre suas ações três oficinas com o tema Poesia e Performance, a serem realizadas nos espaços de bibliotecas comunitárias de Porto Alegre.

As oficinas atenderam públicos adultos e idosos das comunidades e, através delas, os participantes viveram a experiência de escrever seus textos e realizar suas performances. Trabalhei, durante três meses, com duas turmas na Usina do Gasômetro, uma no Clube de Mães do Cristal, e uma na Restinga.

A turma da Restinga se destacou.Quando se apresentaram, na Sala Álvaro Moreyra, junto a uma das turmas da Usina, os poetas da Restinga arrancaram emocionados aplausos da platéia. A eles coube conseguir a interação imediata do público, que se deu as mãos, num gesto conjunto durante o poema “Multiterapia”, do Tio Mano. A eles coube também encerrar a noite, com o samba criado e cantado à capela por Mara Núbia. Verdadeiros, intensos, sem papas na língua - e com uma garra incomum. São poetas no papel e na vida. Um exemplo para todos nós.


Assim que cheguei, no primeiro encontro, indagaram todos os detalhes da minha formação e experiências prévias. Olharam de viés para uma desconhecida esquisita que vinha oferecer alguma coisa da qual pareciam não precisar. Analisaram bem do que se tratava, antes de dar confiança. Examinaram a proposta com ares críticos, no sentido mais apropriado do termo.

Depois de umas duas horas de oficina, um senhor cutucou a senhora ao seu lado:

- Vê só, hein Jandira, no nosso tempo, quando a gente tinha a idade dela,não sabia tanta coisa.

- Ah, não sabia. – Respondeu ela, sem tirar os olhos do papel.

- Não digo sobre esses assuntos todos que ela estudou na faculdade, isso qualquer um de nós poderia ter aprendido se tivesse tido a chance, naquela época. Falo de outra coisa.

- O que? – Ela voltou os olhos para ele e para mim.

- Ela sabe que quem não vive para servir não serve para viver.


A dona Jandira compreendeu no ato do que se tratava, e quase citou o versículo bíblico de onde saíram aquelas palavras. Eu é que demorei a entender, e pedi para que o seu Olímpio repetisse duas vezes a frase. Ele explicou:

- Telma, tu sabes o que a tevê fala da Restinga. Que nós somos o lixo da sociedade, os miseráveis. Não é verdade, e a prova é que tu estás aqui, nos servindo.

E foi isso o que fiz. Quanto mais os servia, mais me sentia livre, e menos me sentia serva. A cada encontro, voltava para casa mais rica. Minha função era a de levar a eles conhecimentos específicos (referências, técnicas) e o que acontecia era que eu voltava com amplos aprendizados. Meu horizonte se alargou. Minha vida ficou mais colorida. Mesmo o tempo adquiriu um outro peso e medida. E a minha compreensão da poesia foi revista e alterada a partir dessa experiência.


É só na junção dessas duas coisas: estudo e prática; teoria e experiência; que a arte acontece. Um equilíbrio difícil que poucos poetas hoje conseguem, a perceber a falta de eco das produções contemporâneas na vida cultural brasileira. Quem conhece, cita e reverbera os versos dos autores vivos mais premiados? Muito se fala desse abismo, desse vazio de uma produção poética autocentrada, poesia escrita por poetas para poetas, poesia publicada com tiragens de 300 exemplares.“Não há público para a poesia” – é quase uma lei geral, dogma da religião dos bacanas.O mundo está cheio de gente, as escolas de alunos, as cidades de transeuntes. Como é que não há público? A performance de poesia é um instrumento poderoso. Através dela, é possível perceber de forma imediata qual a reação dos diferentes públicos ao texto. Muitas vezes, os links e relações que fazem um poema se tornar comunicativo para um grande número de pessoas é o seu aspecto temático, além do seu tratamento formal.

A forma tem que estar adequada ao conteúdo, mas o conteúdo é o que preenche a forma. De que me adiantaria, como jovem poeta, formada em filosofia pela Ufrgs, mestra em literatura, autora de dois livros subsidiados com investimento público, de que me adiantaria a leitura de Fernando Pessoa e Octavio Paz, Kant e Hegel, Ezra Pound e T.S. Eliot, não fosse esse cabedal teórico e técnico devidamente relacionado, testado e comparado com o resultado da experiência? Eu tinha os conceitos, mas não tinha o mundo, esse mundo que se percorre a pé e com poeira debaixo dos sapatos.


No microcosmo da macrorestinga há muita gente que consegue criar fissuras no sistema literário e, nessa relativa marginalidade supera, em mais de um aspecto, as barreiras e dificuldades encontradas pelas figuras dos “grandes autores” da poesia livresca. Eles escrevem e são lidos, comentados e criticados. Eles interferem na paisagem cultural da sua comunidade. Têm força de vontade suficiente para organizar eventos, repercutindo as suas ações de maneira a multiplicar as conquistas. O objetivo deste blog é divulgar um pouco dos resultados obtidos e da continuidade de ações que eles, que começaram freqüentando a oficina, estão fazendo repercutir no seu meio. A idéia é que essa semente que lancei brote do jeito que ela puder e quiser: então aqui estarão livres para se expressar, divulgando seus poemas, seus eventos, suas conquistas.


Fiz questão de postar aqui este depoimento para agradecer. Agradecer a tudo o que aprendi com eles nessa trajetória. Não apenas no aspecto temático e em seus reflexos advindos da experiência e vivência de mundo que os poetas da Restinga contribuíram para a minha formação. A própria necessidade de transpor, de um contexto a outro, tanto os conceitos da teoria literária quanto da técnica e carpintaria, fez com que eu repensasse e testasse a validade e a amplitude desses conceitos. “Vamos ver se isso realmente funciona, fora das salas universitárias e dos jargões” – era uma dúvida que, antes dessa experiência, habitava meu mundo interior. O desafio iluminou os conteúdos e trouxe uma renovada paixão pelo estudo. Sou grata pela oportunidade de poder conversar com eles, na linguagem do seu mundo, sobre Aristóteles, Kant, Ezra Pound e Bashô. Se eles aprenderam, aprendi tanto ou mais. Erra quem imagina que em oficinas como essa é necessária uma superficialidade. Não. Pelo contrário. Algumas das perguntas dos seis autores atendidos causavam perplexidade pela relevância e sofisticação conceitual.

Outro aspecto interessante a se perceber nessa turma da Restinga é a rapidez com que assimilaram as informações e o quanto os conhecimentos técnicos oportunizados pela oficina alteraram sua produção. Ávidos e dedicados, eles aproveitaram cada noção e puseram logo em prática todos os aprendizados.


Telma Scherer - Outono de 2009